quinta-feira, 17 de julho de 2008

Ela.

Magritte

De longe eu a observava. Seus movimentos pareciam vindo de um transe e traduzia sua vontade de integrar-se àquela massa disforme de rostos e pessoas. Os movimentos que ela fazia com o corpo e com os cabelos, eram comuns para a maioria que nos rodeava, todos faziam o mesmo, seguindo o som grave dos surdos e dos batuques do maracatu. Mas ela tinha algo mais: tinha graça, uma beleza indiscreta e sedutora, incenava num palco imaginário seus encantos e sua feminilidade, como se não houvesse nada mais ao redor.

Mas eu via além do belo espetáculo da beleza que fora vendido. Via incenado no seu palco, angústia. Ouvia o grito silenciado dos seus anos sofridos, das suas dores contidas, dos seus medos guardados e o vazio da graciosidade dispensada aos homens que a rodeava com desejo. Via na indiscrição da sua dança, pedidos discretos de ajuda.

Queria tê-la por perto. Não conseguia mantê-la ao meu lado, ninguém conseguia. Era um espírito livre que fazia um esforço tremendo para fazer parte de algo, e um maior ainda para ser alheia a ele.
E de longe eu a observava, linda, sedutora, triste. Tão longe de mim, tão distante de sí.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Desabafo

M.C Escher

Que me desculpem o desabafo, mas a verdade é uma só: Isso de querer tirar interpretação de fatos que nos acontecem inesperadamente, de fazer mudanças repentinas e desajeitadas para uma reorganização de vida que parte do pressuposto que- " tudo que ocorre, ocorre por uma razão" - para mim é desculpa de comodidade. Não sei lidar com o que não planejo e tenho a ilusão de que controlo tudo. Sim, adimito que seja uma ilusão, pois o inesperado acontece, situações nos são impostadas, mas eu caminho novamente, em direção oposta, para reestabelecer a ordem abalada, se é ali que acredito que eu deva ficar. Quem dita o que acontece comigo sou eu! E mesmo que eu não controle todas as variáveis de minha vida, escolho o que fazer com elas. Não sou contra mudanças, pelo contrário, sou a favor de um abalo sísmico subjetivo, ora ou outra, para termos a oportunidade de repensar pontos de vistas, questões morais e comportamentos. Mas adequar situações com pesar, porque assim deve ser? Nem morta!
Além dessa ilusão de controle e auto suficiência, sofro de outros males: neurose, fixações e paranóia. E não, não acredito que eu seja homossexual pelo último mal descrito, ou talvez seja, mas isso não é importante no momento. O que importa é que vez ou outra a forma como vivo não se adequa ao que considero correto: tenho comportamentos absurdos, atitudes irracionais e um estilo de vida que, gostaria absurdamente de mudar, para ser diferente do que sou. Entretanto, como sou também a parte que não quero de mim, dou um jeitinho de encaixa-la alí e formar a conjuntura de unicidade. Por mais bizarro que pareça, escolhi viver de fragmentos e vivo bem, obrigada. Feliz? Ora ou outra, o que já é suficiente, ou vocês acreditam em felicidade eterna? Por favor!
Fora isso, ainda fazendo jus ao título deste texto, sou extremamente egoísta, tudo deve ser do meu jeito, porque obviamente é o mais correto. Sou arrogante e só sei falar de mim, bem digam os posts desse blog.
Mas ao contrário do que possa parecer, me divirto com minhas características, por piores que sejam julgadas e me sinto bem por tê-las, porque sou verdadeira.
Claro eu também sorrio quando não quero, socializo por conveniência, presto favores contrariada. Tenho uma bondade que se manifesta, principalmente nos dias de inverno. Gosto de ensinar. Gosto de criança de rua.

Mas manifestar bondade para conseguir alguma coisa? Nunca. Agradar alguém para ter garantia de companhia sempre? Jamais! Fingir fragilidade para ter o apoio? Nem morta!

E acreditem vocês, tem gente que consegue me amar. Explicação para isso só encontro num fragmento da Clarice Lispector....."Isso lhe assusta? Creio que sim. Mas vale a pena. Mesmo que doa. Dói só no começo."

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Animal de estimação.

Henri Matisse

Nunca tive um cachorrinho de estimação. E olha que sou filha única e a idéia de um animalzinho em casa é bastante interessante se considerarmos o vínculo e a afetividade desprendida nessa relação, para a criança. Infelizmente meu pai não era leitor nem adepto de livros de psicologia na época e sequer sedia aos meus apelos.

- Cachorro dá trabalho, quem é que vai cuidar, você?
- É, eu cuido.
- Até parece, é capaz de deixar o cachorro morrer de fome e de sede.
- Não deixo não! Eu cuido- dizia com os olhinhos lacrimejantes.
- Não, porque solta pêlo e a casa é pequena.
- Eu varro pai, deixa!
- Quando a gente mudar de casa eu compro um.

Eu podia tentar usar a antiga e conhecida arma dos filhos únicos de mobilização parental : me jogar no chão, espernear, gritar - eu quero, eu quero, eu quero -na exposição de filhotes nas saídas dos supermercados, onde até as velhinhas com seus carrinhos de feira sentiriam-se sensibilizadas. E aí a mãe, o exemplo de candura da família diria -Vamos levar um, para a menina, afinal ela merece- e o pai austero acabaria cedendo aos encantos da bela esposa.
Ensaiei o ensejo, mas o que aconteceu foi que, depois do meu pequeno ato teatral amador, cheguei em casa e conheci a força do ryder. Sabe o ryder, o chinelo? Aquele mais grosso, mais duro, mais dolorido de todos. Apanhei com o chinelo número 44 do meu pai até aprender não dar mais vexames em públicos.

O problema é que ainda queria um bichinho, e um dia andando pelos quintais da minha vó achei uma rã. Era engraçadinha com aquelas perninhas compridas e um jetinho desengonçado, toda úmida. Brinquei com ela a tarde toda e não tive dúvidas, levei a rã para casa.

- O que você tem aí Irene?
- Um bichinho que eu achei no jardim, mãe, ele é meu e não tem mãe.
- Como você sabe? Que bichinho é esse?
- Porque ele tava sozinho no jardim, é meu - já falava brava.
- Deixa eu ver....é uma rã! Uma rã! Joga isso fora, já! Tem doença, menina doida!

E lá se foi meu bichinho, que saiu correndo desenfreado, não sei se pelos gritos da minha mãe, ou pelo alívio de não ser mais esmagado pelas minha mãos.
Mas, nem tudo estava perdido na minha infância solitária de bichos de pelúcia poeirentos. Um dia, meu pai chega com uma surpresa: Comprou um bichinho de um bêbado por dó, do bichinho é claro, que era mal tratado e pisoteado. Pagou uma ninharia. O que era? Uma tartaruga.

Fiquei animada com meu amigo cascudo. Mas ele não lambia, não corria, não fazia barulho, só ficava lá parado.

- O que ele faz pai?
- Ué, dá comidinha pra ele, ele vai crescendo.
- Mas ele não brinca, falei desapontada.
- É um bichinho selvagem.É assim mesmo, não faz sujeira.

O pior é que era selvagem e chato. Todo inverno ele se enfiava numa casinha e ficava meses lá sem comer, sem sair, ibernando, todo encolhido. Quando eu ficava impaciente eu puxava ele da casinha e ficava batendo no casquinho, até a cabeça dele se esticar. Fazia carinho nele, nas patinhas e nada! Lá ia ele se enfiar na casinha denovo.

Mas como o destino não é assim tão cruel e meu pai tem um coração mole, achamos numa viagem que fizemos a um sítio, um ninho, que provavelmente caiu de uma árvem recém cortada. Periquitos, todos filhotes. Queria todos, mas após ficarem grandinhos pude ficar só com um, que chamei de Niquinho.
O Niquinho era barulhento que só. Acordava todos os dias as sete da manhã e entoava um som de gralha com maritaca, que acordava todos os vizinhos. E era bravo! Não gostava de carinho não! Bicava até, o dedo, o ombro, a tartaruga.

- Ele é selvagem, é assim mesmo, dizia meu pai. Já deu as sementinhas pra ele?
- Mas ele bica pai, como vou colocar a mão dentro da gaiola?
- Tem que trocar a água também. Não consegue nem com um passarinho, ainda quer ter um cachorro? Deu alface pra tartaruga?
- Ela tá lá enfiada e não sai!
- Tá vendo, como quer ter cachorro?
- Ela iberna pai. Não come.
- Tá vendo, você não pode ter animal de estimação!

Malditos bichos selvagens. E eu só queria um cachorrinho.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Pela metade.

Marc Chagall

Sou mais ou menos alegre,
Mais ou menos ambígua,
Mais ou menos alerta,
Mais ou menos amiga.
Sou mais ou menos esperta,
Mais ou menos bonita,
Mais ou menos correta,
Mais ou menos fingida.

Sou mais ou menos tudo.
Sou mais sonhos e menos mundo,
Mais cordas e menos música,
Mais os outros e menos única.
E de tanto ser mais ou menos,
Sou mais ou menos eu.
Um ser pela metade, pelas frestas,
Meio rosto, meio gosto, meio morno.
Meio bobo, meio torto, meio tudo.

Um ser mais ou menos,
Menos eu e mais vazio.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Circustâncias.

Rene Magritte

Cedo ou tarde chega a hora do confronto: como expectadora, uma noite fria e mal dormida de outono que facilita a instrospecção solitária. De um lado, a ilusão que luta para se mater em pé diante à frieza quase incontestável da realidade dos fatos. O confronto está selado, e a única sensação que fica enquanto forças opostas tentam sobrepujar a verdade é traduzida numa única pergunta:


Onde eu estava esse tempo todo?


Saio de um entorpecimento quase absurdo, louco e cego, e sou jogada sem aviso numa batalha onde não tenho armas para lutar.


Onde estão as minhas armas?


É ensurdecedor o grito que minha alma cala. É caótico e confuso onde estou agora.

Não sei onde estou, nem porque estou e sequer como fui jogada aqui. Como sobrevivo, não sei, se fujo ou se fico.O que sei, é que minha rotina permanecerá a mesma e a minha expressão vai ser de suavidade e serenidade com um sorrisinho espontâneo para os que cruzarem o meu caminho. Mas sei que aqui dentro, não vejo, não ouço, não creio. Lamento.

domingo, 23 de março de 2008

Mentiras.

Pablo Picasso
Quem não é uma mentira para si mesmo? Gostaria de saber quem entre todas espécies culturalmente variadas de indivíduos, confeccionados na mais pura cultura pop, narcísica e extasiante e citando brevemente alguns membros desse conjunto de expressões, os intelectualóides e seus livros inúteis, as tribos urbanas, que precisam mostrar quem são através de estilos efêmeros, a dona de casa e sua novela das oito, o trabalhador em companhia da cerveja depois de doze horas de trabalho cumpridas, quem entre eles não mente para si mesmo, dizendo ser o que não é, fugindo do que é, dizendo ser mais do que é, ou para resumir o assunto: entrar em devaneios permitidos pela sanidade mental para sair do descontentamento subjetivo.

Sim, mentimos e com prazer.

Afinal,a nossa sociedade exige que sejamos indivíduos dispostos à felicidade (a tristeza não é permitida, sendo quase um tabu) indivíduos "saudáveis" ( não se engane, ser saudavel nos dias de hoje é uma referência do culto ao corpo. Ser magra, no caso das mulheres, mesmo que para isso seja necessário intervenções cirurgicas, desenvolver uma anorexia, bulimia e próteses nos seios, bunda, etc. e ser anabolizado no caso dos homens, mesmo que isso lhes custe uma impotência ), dinâmicos ( dinamismo na nossa realidade é não ter tempo para digerir a informação, no maximo degluti-la, e se vomitá-la meu caro, azar o seu).

Essa é a beleza dos nossos tempos pós modernos e com tantas exigências que não vêm de encontro com a expressão do indivíduo e sua subjetividade, vamos capengando até nos adaptarmos à mentira veiculada e as abraçamos como solução à nossas ansiedades.

Nunca antes na história, tantos casos de depressão foram diagnosticados. O deprimido é o doente? Ou o contexto desumano onde ele se insere vai além do que sua razão entende, sua subjetividade compreende, suas forças aguentam? Porque na minha opinião, por mais que a industria farmacêutica enriqueça cada vez mais com a "produção" de doenças e transtornos, eles não são realmente os doentes. Doente é uma sociedade que se sente enebriada com a pretensão de criar um ser humano perfeito e tenta lucrar com isso, e o deprimido numa ilusão quase inocente tenta perseguir o padrão de perfeição criado para outros fins, que não o bem estar pessoal de cada um.

Ninguém é feliz como a família doriana, dos comerciais. Ninguém tem um relacionamento perfeito como os filmes românticos americanos, ninguém mantém bom humor a todo momento e ninguém é bem sucedido em todos os setores.
Não. Sentimos tristeza, angústia, temos frustrações. Isso faz parte de ser humano e seu desenvolvimento. Mas não podemos ser humanos! Temos que transpirar alegria, estampar sorrisos, estar dispostos a confraternizações ...mas quem nos auxilia de pronto a tantas incongruências ? A Industria farmacêutica, com suas fórmulas e seus anti depressivos! E vamos engolir em cápsulas a felicidade, como se isso resolvesse nossa dor.

Tem aqueles que sonham com o corpo perfeito, sensualidade, feminilidade, já que essa é a exigência para alcançar a felicidade. Como isso é conseguido? A cosmética nos serve, para sermos como a moça da capa da revista. Creme anti celulite, anti estrias, silicone para aumentar seios, lipo para tirar gorduras, tecido morto em enxerto labial, laser para manchas...e aí vai. Anorexia e Bulimia, como disfunções alimetares sérias a serem tratadas são encaradas como sintomas secundários, o importante é conquistar o corpo magro, saudavel.

Saudável? Me desculpem, mas nada há de saudavel para mim, ver alguém que se abdica de alimentação, tem o peso muito abaixo do normal de acordo com sua estatura e estrurura óssea, simplesmente para preencher os requisitos dos esteriótipos de beleza vigentes . Mas claro, que alguém ganha muito dinheiro com isso. Preciso dizer quem?

Temos ainda aqueles a quem o tempo, é um inimigo. É necessário ser versátil, dinâmico, absorver informações, conceitos, se tornar um workaholic, ou para ser sincera, um mero instrumento que reproduz o conhecimento adquirido para organizações interessadas. Não há tempo para cansaço. Não há tempos para a dúvidas, e menos ainda para crises existenciais. Mas elas existem, e agora?Agora, meu caro, existe o wisky para se embebedar, maconha para relaxar, ecstase para se sentir melhor, e uma série de outras drogas para fugir. E se esses subterfúgios forem utilizados por um tempo considerado, teremos o toxicômano.

Ele é o doente? Estamos em um momento, que a própria doença passa a ser questionada, e direcionada às manifestações além do indivíduo.

Não seria a sociedade que teria adoecido? Buscando perfeições ilusórias, belezas criadas, adaptações inescrupulosas, onde tal exigência é vendida explicita ou implicitamente pelos meios de comunicação, pela indústria, pelos fármacos, cosméticos, com a pretensão de venderem felicidade. Mas adivinhem? A tal felicidade não vem. Compra-se compulsivamente, consome-se. Momentâneamente ela chega, tão rápido quanto vai embora. Plásticas em busca da beleza, uma não é suficinete, porque o descontentamente volta. Duas muito menos. Drágeas passam a ser combinadas...antidepressivos, calmantes, hipnóticos...nada parece saciar a busca, pela tal felicidade.
Exigimos do indivíduo o que não é de sua natureza, visando enriquecer através de seus desencontentamentos, tristezas e medo.
Enquanto isso a subjetividade, a busca por si mesmo, de sentidos, reflexão sobre caminhos possíveis e daquilo que realmente importa fica em segundo plano. Primeiro é necessário que uma fatia do mercado se enriqueça com nossa ilusão de obter felicidade, atraente, mas irreal.

Por essas e outras, acredito que vivemos de mentiras: Uns com seus narcisimos, outros com suas vontades não satisfeitas. Alguns com suas ilusões e aqueles que se saciam momentâneamente e mantém seus vazios nunca preenchidos.
Existem também aqueles que dizem não fazer parte dessa mentira social. Se julgam superiores, e observando o movimento julgam os outros. São os que mais temem ser absorvidos na superficialidade de suas idéias e estaticidade de suas ações. Acusam no outro o que temem ver em si...mas aqui vai uma novidade meu caro: mentir a si mesmo sem saber, é muito pior.

terça-feira, 18 de março de 2008

Quero.

Vicent Van Gogh

Hoje não há discursos, ou sermões.
Nem histórias reais,
ou tentativas de críticas fundamentadas ou não.
Hoje eu quero sentir a brisa gelada,
o sol da manhã.
Quero sorrir para estranhos,
Cantar sem a letra,
Andar sem destino,
E rir sem motivo.
Quero sentar na calçada,
Olhar espantada,
Ficar enamorada,
E estar feliz,
por ver que há mais para se buscar.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Diogo.

Edvard Munch

Para o homem que eu amo de uma forma inexplicável, pela pessoa que é, pelos sonhos que tem e pela vida que traz no olhar.

"A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os poucos capazes de os sentir e entender. Nessas moradas estão tesouros da ternura humana dos quais só os diferentes são capazes. Não mexa com o amor de um diferente. A menos que você seja suficientemente forte para suportá-lo depois".
( Artur da Tavola)


Até Freud...

Arte de Mônica Facó

Não é segredo pra ninguém que eu sou apaixonada pela psicanálise e aspiro entender os determinismos e complexos do nosso velhinho charmoso Sigmund e suas teorias que para mim, tudo tem de coerente.
Qual não foi minha surpresa, por saber da sua tradição médica e positivista, me deparar com um trecho dele, que de psicanalítico não tem nada, mas que vislumbrava a arte e o artista dizendo que estes são os verdadeiros conhecedores da alma humana, e não a ciência e suas formulações.

Eis o trecho:

Poetas e romancistas são nossos preciosos aliados,
e seu testemunho deve ser altamente estimado,
pois eles conhecem muitas coisas entre o céu e a terra,
com que nossa sabedoria escolar não poderia ainda sonhar.
Nossos mestres conhecem a psique, porque se abeberaram
em fontes que nós, homens comuns, ainda não tonamos acessíveis à ciência.
Freud ( O delírio e os sonhos na Gradiva de Jensen, 1906)

Por isso que eu digo: Ler Freud é sempre uma surpresa !

quarta-feira, 12 de março de 2008

Só pra constar.

Wassily Kandinsky

Não entendo as mulheres...eu adoro menstruar.
É um ritual único, que além de ser um marco de passagem , como todos sabem, é um episódio que marca só a vida das mulheres. O poder da criação! A representação do feminino, da incógnita, dos mistérios!
Fico abismada quando ouço mulheres por aí dizendo que sentem nojo, vergonha, que se sentem inseguras... Inseguras por quê? É uma vagina liberando sangue, por favor! O que há de nojento nisso?
Para mim é singular, porque me sinto em equilíbrio com meu corpo. E olha que não estou sendo hipócrita não...tenho cólicas, seios doloridos, e uma puta tpm dos infernos.
Mas prefiro encarar o fato de menstruar como um poder que só cabe às mulheres, às suas opções de gerar ou não uma vida e uma reafirmação da sua feminilidade. No paganismo, o sangue menstrual era curativo. Os guerreiros feridos, ou membros do clã que adoecessem eram embebidos por esse sangue e todos acreditavam que através dele, seriam curados. Agora, em pleno século XXI, a mulher que se emancipou, que diz que- pode- isso, que-pode- aquilo, vem me dizer que tem nojo ou vergolha do seu fluxo menstrual? Ah, me poupe!
Prefiro meu ritual de sete dias menstruando, do que as patéticas poluções noturnas masculinas, ou aquelas ereções matinas despropositadas.
Mulheres, por favor! É hora de olharem para suas vaginas, sentirem seu corpo e deixar seu o fluxo menstrual em paz!
E sim, eu usei Kandinsky pra falar de mestruação, e daí? Eu posso, tô de tpm.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Religião? Não, graças a deus!

Leonardo Da Vinci

Quando eu era criança, minhas brincadeiras e bonecas dividiam espaço com o poder divino. Sim, eu era rodeada por santos e imagens católicas. Mais que isso: minha pequena existência já era permeada pela rotina cristã de novenas, missas,terços quinzenais e visitas a cemitérios. Me explico.
Minha criação, digo criação e não educação porque esta foi de responsabilidade dos meus pais, foi dividida entre duas pessoas e mesma figura: minhas avós. A primeira me presenteava com clicletes toda vez que me encontrava, e se sentia ressentida se eu não comesse dois pedaços de qualquer coisa que ela cozinhasse. Essa era devora de Nossa Senhora da Aparecida e todo dia de manhã colocava café para uma estatua quebrada de São Benedito. A segunda não gostava muito que eu me aproximasse do baleiro e nem que eu comesse duas vezes a mesma coisa. Tudo devia ser dividido igualmente entre todos, e os mais velhos comiam a sobremesa primeiro. Comunista? Não, católica.
Esta me iniciou na prática cristã, e me ensinou a fazer uns sinais na testa. Ficava muito com ela, mais que com a primeira e eu a acompanhava em sua rotina.
Quarta- feira íamos à novena. Lá eu gostava de observar uma santa que tinha umas chagas na testa, e olhava para nós lá de cima com um ar de sofrimento comovente:

- É a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro - ela dizia.
- E o que ela faz vó?
- Ela socorre por nós.
- Por quê?
- Porque é santa. Ela sofreu por todos nós.
- Quem judiou dela?
- Não sei. Presta atenção no padre. É falta de educação !

Eu gostava desta santa. Gostava de um túmulo fictício de Jesus também, que ficava dentro da mesma igreja e que tinha uns espinhos na cabeça e a boca entreaberta. Nunca ficava lá se minha avó não estivesse perto. Tinha medo que ele abrisse os olhos.

- Vamos acender uma velinha, lá atrás.

O cheiro de parafina era delicioso. Alí atrás queimavam promessas, pedidos, arrependimentos e vinte centavos da carteira.

- Tira o terço do pescoço, não é colar, ai que pecado!

Quinzenalmente tinha uma reza lá na casa da minha vó. Lá as vizinhas velhas, todas mal vestidas, faziam um altar e no alto dele colocavam uma foto da Nossa Senhora em moldura e vidro. Murmuravam umas preces e no final beijavam o vidro.
Missas aos domingos. Visitas ao cemitério toda quinta. Íamos de túmulo em túmulo, fazendo vistas:

- Essa é a tia Ceição.

A tia Ceição era um mármore marrom com flores murchas.

- Aqui é a vizinha da tia Cida. Coitada. Foi cedo. O marido bebia. Sofreu coitada.

Ás quintas visitávamos todos os parentes, conhecidos, vizinhos, milagreiros-defuntos. Todos.
Minha outra avó, por sorte minha, era mais eclética:

- Se ele não gosta de você, fia, vem cá que a vó vai te ensinar uma coisa. Compra um perfume, e um par de brinco. Vem cá que a vó pede.

E alí no jardim de roseiras, com as oferendas já postas, no fundo do quintal ela pedia:

- Maria sete saias, ajuda minha neta a conseguir o que ela quer. Agora pede em pensamento, fia.
- Pede com o terço vó?
- Não! Que terço! Pede pra Maria sete saias o que você quer e ela vai te trazer.

Pedia.

- Agora reza uma ave maria.
- Pra Nossa Senhora?
- Não fia, pra ela.

E no final da reza, ela acendia um cigarro, com um sorriso no rosto.

Não me lembro se dava certo ou não. Mas era divertido fazer isso tudo com minhas avós. Como ia gostar da arte gótica, se não fosse minhas idas ao cemitério?Como ia conhecer os rituais religiosos e a diversidade cultural, se não fosse os brincos para Maria sete saias?
Fora isso o que aprendi ? Que dogmas aprisionam, que manifestação religiosa é desespero e que as pessoas precisam de fé para viver. E outra coisa importante que me utilizei muito na minha adolescência:

- Onde você vai a essa hora?
- Ora, que pergunta...no grupo de jovens da igreja!

Aprendi que saídas noturnas na presença divina, eram permitidas!

segunda-feira, 3 de março de 2008

A lista dos doze.

Edvard Munch

Ás vezes, numa noite como essa, onde minha única companhia é o silêncio de uma vizinhança de velhinhos respeitosos e calados após as dez, tenho a introspecção de pensar que eu poderia ser uma pessoa melhor. Tenho uma lista imaginária de coisas que gostaria de mudar para ser melhor. E é uma lista grande, que para aqueles que comigo convivem, o fato seria encarado como pilhéria e o comentário seria "mais uma da Irene". A Irene é doida mesmo". Nem se ateriam à minha vontade e ás aspirações ansiosas de minha mudança interior.

Também, quem sou eu para os outros?

Uma risonha, disposta a entreter o mundo. Extrovertida, engraçada que quando irada, perde a razão.

Tudo bobagens. A lista continua grande, e hoje pensando em tantas situações e em peças que a vida anda me pregando, quero organiza-la para além do subjetivo. Talvez eu consiga, vejamos :


1 - Gostaria de poder olhar nos olhos dos meus familiares e dizer que os amo, e o quanto são importantes para mim, ao invés de manter uma distância sadia e segura para qualquer desgaste emocional eminente.


2 - Gostaria de chorar perto das pessoas e deixar que me ajudassem quando preciso de ajuda.


3- Gostaria de ser mais forte do que pareçer ser forte.


4- Ah sim: pedir ajuda, além de ajudar: Como se faz isso ?


5 - Gostaria de ser menos impetuosa, um pouco menos grossa e a rir em situações de tensão, ao invés de quebrar objetos, ameaçar as pessoas com processos e tortura-los com diálogos intermináveis sobre os direitos e deveres de cada um.


6 - E porque não acreditar em alguma força superior, deus, energia, anjos? Sei lá. Uma dessas coisas, para o espírito se encontrar, meditar, e com isso, estampar aquele meio sorriso, a lá Monaliza, como se algo supriendentemente valioso fosse de meu conhecimento.


7- Queria perder o medo. E daí que o medo seja necessário? Queria nunca mais sentir medo.


8 - E respeitar um pouco as normas. Descobri que as normas trazem tranquilidade. Para o ser, para os outros.


9- Gostaria de ter persistência e não desistir de nada pela metade, quando outra coisa me chamar a atenção.


10- Queria ter um pouquinho menos de preguiça, e ligar um botãozinho para o sono ir embora depois do almoço.


11- Entender os filmes do Almodovar, antes de dormir na metade deles.


12- E um bichinho de estimação, que não sejam tartarugas ou canários...um cachorrinho para me lamber quando eu estiver carente.


Já são doze. Mas a lista é muito maior.

Ninguém disse que seria fácil ser um humano mesmo. Bem feito!

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Á parte.

Arte de Lispector

Penso.
Sinto e escrevo.
O mundo progride sem meus pensamentos e sentimentos inúteis em papel.
Tudo continua a existir.
Por deus me deixem parar de pensar,e de sentir.
Deixem-me, isolem-me.
Sim, eu sou triste.
Olho pela persiana, cai uma chuvinha fina.
Ainda são nove da noite, nem sinal da vigilia.
Sem remédios, sem cigarro.
Sozinha, e a maldita chuva fina.
Desejo ser expectadora dos fatos.
Sim, uma observadora passiva.
E antes que as sinapses voltem a incomodar meu mundo de fantasias
Eu torço, para que o sono venha.
Que venha logo!
Para que eu não precise pensar.
E muito menos escrever.



Tentativa de bom humor.

Amadeo Modigliani

Mas também como nem tudo tem que ser crítica, ou reclamações ( o que é uma merda porque só sei escrever disso) vamos mudar um pouco o estilo, seguindo os conselhos do meu pai que diz na ilusão dele que toda energia que emana de você é atraída por você.

Bom vou tentar seguir o mestre, mas o que vou escrever então?

Vamos lá...hoje acordei, bebi um café fraco pra diabo, que nem duas xícaras reporiam a necessidade da cafeína do meu sangue....A televisão estava ligada naquele canal, que passa um trecho de cada programação, mas não ia dar tempo de ver mesmo, olha a bagunça aqui em casa ! Impressionante como ninguém ajeita as coisas ...ó eu reclamando denovo! Vou recomeçar.


Acordei e abri as janelas, vi um lindo passarinho cantando, piupiupiu pra cá, piupiupiu pra lá, no terceiro piu já arremessei meu scarpin no bichinho e ainda reparei que a grama do jardim precisava ser cortada.

Essa coisa de liberação feminina é uma merda mesmo não? Aí a gente trabalha fora, trabalha em casa e no final, além do trânsito, da chuva, do pó doméstico e da roupa no varal, temos que estar lindas e atraentes para o homem, marido amante sei lá, com perfume suave, maquiagem discreta e escova nos cabelos. Ah como eu odeio os comerciais da Boticário! Ainda estou reclamando ?

Ah mas não vou começar denovo porra nenhuma. Acho mesmo é que tem que ter uma tal liberação masculina aí. Queimem a cueca, sei lá...
Eu quero é deitar o meu bundão no sofá e ler o Tchecov que faz 3 semanas que permanece na página 23.

Mas uma coisa é certa . E essa faz jus ao título deste post. É o sorriso e o abraço apertado que recebo cada vez que chego, é o carinho e o cheirinho que ele tem atrás da orelha, é o mimo, a comidinha no prato e o carinho para dormir.


É pensando bem, faz toda a diferença.

O que não significa que amanhã eu não mate aquele pardalzinho piando na minha janela.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Vitrines de self

Fotografia de autor desconhcido
Sermos nós mesmos. Uma definição amplamente divulgada e bem aceita em nossos meios, onde o narcisismo fatalista conseguiu lugar privilegiado. Seja você mesmo, independente dos que os outros falem! Os aplausos ressoam, e a platéia desamparada, mas amparada de modismo intelectual, se apressa em buscar, entre as várias formas de eu, um que vista bem. Busca-se vitrines, busca-se estilos. Escolhe-se um que caiba. Um que seja exótico, irreverente e que exalte individualidade.
Ah, a individualidade! Não poderia faltar, nos ditames contemporâneos um estilo que não a exaltasse com bravura! Vestindo um eu, meio as pressas, a plateia desamparada clama para o mundo: Este sou eu, eu sou assim! Os outros que me aceitem! Bravo.Veste bem. Soa bem. Desde que não se vá mais a fundo no estilo escolhido, investigando por exemplo o que é esse eu, no que ele se constitui e em quais ideais ele está ligado. Quais angústias sofrem. Que medos tem. Que sentimentos carregam.
Difícil saber, pois estes não vem com a etiqueta. Mas isso não é problema. Se esse eu esta gerando tantas perguntas sem respostas, e o inoportuno de dúvidas ( não há tempo para dúvidas) pode-se dirigir-se à vitrine novamente, escolher um outro eu!
Dessa vez um eu que não se ocupe somente com assuntos mundanos, que seja introspectivo e faça leituras de auto ajuda , esses livros de banca de quatro e noventa.
E se este confrontar-se com o momento contextual de debates e provocações, é só dirigir-se à sessões de trocas: escolha um modelo contestador e desafiador, adepto às revoluções.
Até que ele dê algum defeito...os modelos são infinitamente variados e as possibilidades sempre evidenciadas. De eu em eu, a platéia migra, desconhecendo ser, mas conhecendo estar. Na impossibilidade de existir, mas na possibilidade de experimentar. Ser, sem saber o que se é.

Numa mesa de boteco, um quê de introspecção.

Gravura - Autor desconhecido

Noite fria de domingo. Visto uma roupa qualquer, pego um casaco e vou. Bar de sempre. As pessoas de sempre. Tudo me parece igual, mesmo após eu ter me ausentado por um tempo considerável. A única diferença se limita à um atrativo que, o dono do estabelecimento considedou viável para entreter os seus clientes, um tal de cultural game... Para mim soaria melhor se estivéssemos no verão, mas enfim, vale a tentativa.
Tudo me parece igual: pseudo-intelectuais sentados em mesas com quatro cadeiras, músicos inquietos e suas garrafas e cigarros acesos, idealistas mal vestidos encostados nas muretas discutindo algo possivelmnete relevante à realidade brasileira, meninas com as pernas a mostra bebendo algo adocicado, a espera de homens interessantes, representantes do heavy metal à parte, no chão, gritando algo ininteligível.
E lá estou eu, participante do barulho, das risadas altas, da fumaça e do álcool. Interlocutora dos assuntos banais, que depois de um tempo não comunicam mais. Discretamente me coloco à parte. Deixo os meus, e me ponho a observar. E observo.
Analogicamente penso em ilhas. Ilhas de conhecimentos não compartilhados. Olho a diversidade dos grupos que interagem perfeitamente em harmonia. Harmonia individualizante. Comunicam aos outros o conhecimento que adquiriram e a experiência que possuem. O artesão discorre sutilmente como a arte hoje em dia é valorizada, dando bons resultados financeiros. Defende que essa é a saída. O idealista, defende que deixará todas as suas paixões de lado, para defender a sua causa, porque essa é a saída. O arruaceiro quer usufruir de todas essas paixões e cerca as meninas receptivas ao seu charme, porque o sexo, ah o sexo é a saída! O solitário, busca na cerveja socializar-se porque o contato com o outro, é a saída.
Meio ao movimento, observo ilhas. Ilhas fortemente constituídas de história pessoal. Ilhas que compartilham com as outras, mas que carregam intimamente crenças, sentimentos e anseios que guiarão seus passos e seus caminhos. Interagem, comunicam, expalham-se...serão tocadas por outros ventos, outras aves...mas ainda assim, serão ilhas!
Devaneios demais para um domingo a noite...Esqueço brevemente às analogias e acendo um cigarro. Logo, os grupos se dissipam...pego minha bolsa e vou embora.

E se há alma, como mantê-la?

Pablo Picasso


Quarto de motel. Uma noite qualquer de domingo. Os corpos se entregam ao cansaço trêmulo e saciam-se do toque, aquele que só ocorre no final de uma noite de sexo. Ele descança a cabeça no meu colo e eu afago seus cabelos, sentindo o calor de suas mãos no meu corpo e uma respiração, que de ofegante, torna-se lenta. Acendo um cigarro. Desvio o olhar para um dos espelhos e vejo a cena que ele mostra. Nesse momento sinto que poderia morrer. Alí, num quarto de motel. A minha dúvida entretanto é somente uma: poderia eu morrer porque da vida, aquela cena e o que vinha dela já me bastava, ou porque havia somente três minutos naquele cigarro, e depois dele tudo aquilo iria continuar?

Existência inventada.

Salvador Dalí

Procuro respostas para fatos inventados. Ilusoriamente as encontro, e sacio-me momentâneamente. A vida que existe em mim é inventada e nada existe em mim além disso, de mentiras criadas.
Vivo de uma força que eu não tenho e o curioso é que não me engano. Finge-se o tempo todo, e eu também usufruo de tal alívio, mesmo sabendo que não é força que habita em mim. Talvez o que exista, sejam reações apropriadas, protocoladas e necessárias.
Desempenho.
As minhas palavras sequer são minhas. Meus pensamentos, então, seriam meus? Finjo na imensidão do vazio que sou, ser muito mais do que sou. Aliás não sei se sou alguma coisa.
A minha realidade é insanamente bela, em sua aparente criação. Construí-la demandou certo esforço, mas segui os modelos de felicidade e estranhamente isso me bastou. Uma realidade superficial e vulgar.
Tenho inimigos que não trajam vestes, ou possuem feições. Habitam uma parte desconhecida de mim, e me apunhalam vez ou outra, para que com a dor, eu obedeça suas determinações.
Obedeço.
Entro em contato com o que existe nessas fragmentações de mim, e me detesto. Detesto o que crio, e que busco, o que me amedronta. Detesto o que invento, o que vivo, o que aspiro.
E mesmo assim, na aberração insignificante que sou, acordo todos os dias às seis, coloco na bolsa minhas mentiras e existo.

Cegueira universitária e inutilidade.


Ônibus em movimento, rumo à São Carlos. Os universitários formam um aglomerado de gente e de debates, possivelmente relevantes, sobre pesquisas acadêmicas, viagens ao exterior e o ponto de vista de algum filósofo sobre o amor. Sentado à minha frente, um homem barbudo com sandalias de couro, mostra à uma moça risonha, a capa de um livro do Bukowski, e discorre trechos do mesmo, como se quisesse dividir os versos para todo o ônibus e não só para ela. Rapazes de tênis sujo demostram-se entediados com a viagem e alheios ao resto, descansam a cabeça na janela, ouvindo músicas em mp3.
Em alguma parte do trecho, meio a Bukowski e uma discussão sobre a queda da bolsa de Xangai, o ônibus para e sobem outros passageiros. São cinco. Seus jeans também são rasgados, como a dos universitários, mas não vieram da vitrine do shopping, e nem custaram duzentos paus. Os tênis também são sujos, mas a sujeira não era para contestar nada, muito menos para ostentar revolução. Os novos passageiros carregavam malas também...eram sacos de lixo, daqueles pretos. Também tinham o cabelo desarrumado, mas porque trabalhavam no sol das duas, no canavial , e isso dispensa qualquer corte desfiado de navalha.
Entraram no ônibus, e ficaram em pé nos corredores, com seus sacos de plástico no chão. Os passageiros emudeceram. Será que foi porque eles não poderiam ser interlocutores de assuntos como a bolsa de Xangai, ou será que foi porque não conheciam o amor na visão dos filósofos?
Será que mostravam no rosto marcas que, os universitários tentavam mostrar através de estilo e roupas? Ou será que era porque eles, como outros tantos trabalhadores brasileiros mostravam na pele queimada e no suor da testa a realidade de um país, e não a realidade entre muros de uma Universidade? Acusavam o conhecimento intelectual? A cegueira social disfarçada em capas duras ?
Não sei, só sei que incomodaram. Tanto, que os entediados abriram os olhos, as mocinhas decotadas subiram a blusa, e os livros foram cuidadosamente colocados no colo. Os novos passageiros não perceberam o movimento, e simplesmente esperavam chegar ao seu destino. Chegaram antes. Pararam na estrada.
Depois de alguns minutos rodados, as conversas voltaram na sua direção normal, projetos acadêmicos, algumas críticas sobre autores positivistas....e vejo pela janela, ficando para traz os trabalhadores rurais, andando, seguindo a poeira da estrada.

Necessidade humana.


Magritte



Não há como negar a natureza de cada ser. Se há liberdade em seu espírito, você nunca deixará de voar, mesmo que suas asas sejam tolhidas pela força de outrem, pelas peripécias do tempo.
Se há insatisfação em tua alma, a busca será um grande aliado, e ao mesmo tempo, seu maior inimigo. Alia-se à insatisfação a sede de respostas e vontade de dominar o desconhecido. Aos poucos novos horizontes se descortinam.
Mas há sempre algo a se buscar, logo o contentamento apaziguador da recente descoberta transforma a tranquilidade, em impulsos vorazes de lançar-se novamente no desconhecido. Sentir o frio que a escuridão reserva. Sentir o medo que o novo causa.
Não há tempo para usufruir, há sempre mais. Há sempre busca.
E se não houver razões, cria-se. Simplesmente para obedecer a natureza do ser, para sentir o prazer de percorrer o caminho.
Se essa é a sua natureza, busque, mas não se iluda. Tudo o que conseguires, será rapidamente abandonado.
Afinal, de que vale o obsoleto?

Inexistência de deus.

Arte de Garret Walker.


Talvez uma das primeiras manifestações do ser, que constitui-se grupal para sua própria sobrevivência e não extinção, tenha sido a espiritualidade. Desde os primórdios, os estímulos que a natureza provocava nos nossos ancestrais, que já simbolizavam através da cultura, eram interpretados ou pelo menos nomeados como evidência da existência de algo maior.
E assim, rituais pagãos se instauraram. Passa-se o tempo, muda-se o contexto e belíssimos templos foram criados. Organizações sociais em torno da fé. Fé em deuses, em deusas. Até que culmina-se em um único deus. Evolução? Só se o genocídio e o etnocídio forem consideradas como tal. Mas essa é uma outra discussão.
Surge um deus. Milhares de indivíduos aglomerados manifestando sua fé em igrejas, cultos, centros, guerras. Alguns pedindo, outros agradecendo, outros ofertando e outros matando.
No mais, penso cá com meus botões a razão para o fato. Com relação aos extremistas, creio que o contexto sócio-histórico fala por sí só. Ocupo-me a investigar com alguns amigos, os mais próximos, que me respondem intrigados:..." deve haver um motivo para isso tudo. Há uma explicação para estarmos aqui! Alguns familiares mais tradicionais comentam quase introspectivos:..precisamos nos apegar em algo, senão não aguentamos! Outros não sabem, acreditam que assim deve ser.
E por que não aceitamos o fato de que o motivo para tudo isso foi um acidente do acaso, que através do qual nos adaptamos e perpetuamos? Que nascemos, crescemos, nos desenvolvemos e morremos, como qualquer espécie biologicamente semelhante, ou não ( nunca ouvi falar no céu das plantas, ou na reencarnação de um bezerro). Por que não nos atemos às explicações cientificas? Veja, os primórdios não detinham as explicações que hoje, a ciência nos oferece. Uma aura hoje é explicada pela física.
Então o motivo cai no subjetivo. A angústia. A angústia de saber, que o preço que pagamos por estar vivo e viver em sociedade é muito alto. Que nos abstemos de prazeres em nome de obrigações.A angústia de conviver diariamente com injustiça social ( o controle necessário das massas?). A angústia de perder quem amamos, de conviver com doenças incuráveis, catastrofes naturais. De morrer, simplesmente morrer, sem que nada disso tenha feito o menor sentido...
Esse é o fato. Como dizem os existencialistas, é a dor de estar abandonado à própria sorte.
No mais, a angústia é amenizada pela fé. Ameniza a dor de ser um ser do acaso, da finitude sem porque.
E não, não tenho nada a oferecer, nesse texto que substitua seu deus. Só constato o fato.
A escolha transita entre a angustia e a alienação. Que seja feita a tua vontade...!