- Você é arrogante e egoísta! E ainda fica me julgando! Não entende minha situação.
- Não estou te julgando, eu entendo sim, mas é que as coisas não tem que ser assim e...
- Vocês são psicólogas? - pergunta a funcionária da universidade que nos encontrou na rodoviária
-Somos, respondo baixinho
- Ai que legal que é ser psicóloga, psicólogos não tem problemas né?
Ai deus, mais uma daquelas.
- Temos sim, quem é que não tem problemas, não é?
- Ah vocês não tem não! Acho muito bacana, logo vocês vão voltar aqui né? Vou procurar vocês.
Concordamos com a cabeça e nos despedimos da simpática funcionária, que tomou seu ônibus.
Logo nosso ônibus também chegou. Três horas de viagem pela frente, e um bico imenso da melhor amiga que sentou no meu lugar na janela e pegou meu livrinho de viagem para ler. Não falei nada, afinal de contas eu era arrogante e egoísta e precisava melhorar a situação.
Sem ter a janela para os devaneios e o livro para ler, pensei num breve cochilo. Afinal foram oito horas de aula, e tinha viajado a manhã toda.
Tão logo caí no sono, o ônibus dá sua primeira parada:
-Fernandoooo!!!!!
Acordei em sobressalto com o grito
-O loco cara, é você mesmo?
- Fala André, que coincidência. To voltando cara!
- Faz quanto tempo que você tá fora?
- Um seis meses cara. To lá em Votuporanga. Aquilo sim é vida mano. Longe daquela desgraça de mulher! Cara não posso nem ver ela na frente.
-Verdade? O que aconteceu?
Era a pergunta que eu temia. Não pela história, ou pela conversa: pela altura da prosa. E assim ele foi contando para o amigo e para todo ônibus sua saga amorosa e o quanto não gostava mais da moça em questão.
Já que não podia dormir, estava sem a janela e sem o livro, fiquei tentando olhar para a outra janela do corredor. Nesse banco, tinha uma menina engraçadinha comendo aqueles salgadinhos fedidos, no colo da mãe já impaciente com a menina, que não parava quieta. Fiquei olhando ela brincar com o salgadinho, mas tentando alcançar a janela. Quando reparo, a mãe está me olhando feio, perguntando com o olhar: - O que você está olhando aqui? Está me achando feia? Talvez gorda? Uma mãe ruim porque a menina está bagunçando?
Antes de começar qualquer diálogo desagradável, abandonei olhar a janela do corredor. Fiquei olhando as costas do banco do André, o interlocutor de assuntos do coração.
Próxima parada. Alguns descem, outros sobem. Entre os que sobem, seis meninas muito animadas, com cervejas na mão, saias curtas e muito gloss. Sentam lá no fundo e começaram a planejar o que iriam fazer quando chegassem na balada.
"Mas esse ônibus lá é ônibus de levar alguém na balada?!" -pensei.
É claro que as meninas baladeiras animam os viajantes da frente, que incessantemente olham para trás, para conseguir algum olhar, ou algum risinho das garotas. E para fazê-lo, debruçavam no banco com o cotovelo, subindo no acento com os joelhos.
-Puta que pariu...
Nessa altura minha amiga já esta sem o bico, e começa a solidarizar comigo, com risinhos marotos.
Na terceira parada, todos descem e pouquíssimos sobem. Olhamos aliviadas uma para a outra com a vã ilusão de que teríamos uma viagem sossegada. Mas inventaram a porcaria do celular né? Tinham que inventar...
- Alô! Alô!! Atende essa porcaria de telefone que eu já tô na estrada! Não desliga esse telefone, eu tô te avisando! Fala comigo! - falava a moça indignada, batendo com o celular o banco da frente, quando a outra pessoa desligava.
- Você não pode fazer isso, o que eu vou fazer? Já estou com as malas. Você vai me buscar! Vai sim! Não posso ficar lá sozinha...já soluçava a garota.
Talvez se eu não estivesse viajando desde as seis da manhã, se eu estivesse na janela, se eu pudesse virar minha cabeça para olhar o corredor, se eu pudesse ler o meu livrinho, se eu não estivesse a sete dias sem transar e com meio hamburguer no estômago, eu até sentisse pena da moça. Mas eu já começava a achar que existia um complô sobrenatural que conspirava contra meu sossego e emburrei encolhida no banco.
Na quarta parada ( que diacho esse ônibus para tanto?), a moça desceu. Bocaina, terra dos sertanejos, cidade interiorana simpática, pequenininha. Mais uma hora de viagem até nosso destino.
Quando o ônibus retoma seu caminho, um passageiro teve a brilhante idéia de ouvir música. Sem fones de ouvido, claro. E como desgraça pouca é bobagem, colocou um sertanejo e ia cantando junto com a letra:
"-Te dei o sol, te dei o mar"....!!!
Fechei os olhos e comecei a abstrair.
" Vou ouvir a musiquinha, fechar os olhos que daqui a pouco chega"....
Até que de repente outro passageiro quis compartilhar seu gosto musical conosco:
" I wanna hold ´em like they do in Texas place...." lady gaga, altíssimo, misturado com a dupla sertaneja que não sei o nome.
Nessa altura do compeonato minha amiga perde a paciência:
- Ah é assim, agora chega!
- Que você vai fazer?
- Vou colocar uma música também!
- Coloca uma calminha do Luis Tatit então e...
- Que Luis Tatit, o que. Vou por essa!
E ela, com um ar desafiador esquisito, que nunca vi na minha amiga dá o play em Piace Of My Heart da Janis Joplin, com aqueles agudos e solos de guitarra que só combinam com depressão ou cerveja.
É claro que o som incomodou, e ao invés de todos terem a sensata idéia de desligar suas musiquinhas, outros passageiros resolveram ativar o MP3 de seus celulares, misturando todos os estilos musicais possíveis em catorze metros de ônibus.
- E ai se alguém falar alguma coisa!! ela resmungava.
- Pai?
- Oi filha já chegou?
-Cheguei! Preciso da sua ajuda.
- O que é?
-Preciso urgente que você me ensine a ultrapassar caminhões na estrada.
- Por que? Vai de ônibus, filha. É tranquilo e você vai lendo um livrinho, vendo a paisagem da janela, ouvindo uma musiquinha.
-Livro, o que! Música, o que! Quero ultrapassar os malditos caminhões!
- Credo! Você nem veio dirigindo na estrada, não era para estar assim estressada.
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